Como uma onda do mar

O meio ambiente e relações institucionais e governamentais

Daniela Giacobbo

Breves ensaios não podem pretender solucionar questões complexas, como a expansão do setor elétrico brasileiro. Assim, da inquietação diante das complexas demandas apresentadas por clientes e a partir dos debates em que participo, lanço apenas ideias e questionamentos.

Como o pensamento modesto, porém genial de Roberto Campos que, em sua autobiografia(1), parafraseou Samuel Taylor Coleridge, ao referir que a sua despretensiosa obra seria como “uma lanterna na popa, que ilumina apenas as ondas que deixamos para trás”.

Felizmente, muitas ondas e ideias surgiram no país a partir da atuação do ideólogo liberal que influenciou gerações e passou por vários governos e reformas enquanto diplomata,  economista,  tecnocrata,  administrador  público  e  político e  que,  nessa condição, enfrentou  vários  dilemas e problemas na sempre desafiadora tarefados governos de conciliar em economia e igualdade social.

Hoje, vivemos um desafio tão grande quanto, que é o conciliar meio ambiente e crescimento socioeconômico. E que nem mais desafio deveria ser, já que é mandatória a   conciliação   de sistemas apenas aparentemente   dissociados porque   consta   na Constituição Federal. A par de ser uma questão de sobrevivência.  E que, por isso, faz parte não só das políticas públicas como é agora incorporado pelas empresas, que cada vez mais adotam a ferramenta ESG. No setor elétrico não tem sido diferente. Embora possua uma cultura de planejamento com restruturação e evolução relativamente recentes, o SEB sempre experimentou crises econômicas e ambientais, na tentativa de universalizar o    acesso aos    serviços    de    eletricidade. A    nossa    vocação    para hidroeletricidade tem sido constantemente posta à prova em razão de crises hídricas, as quais requerem não só a criação de mecanismos de gerenciamento da demanda, como soluções regulatórias. O processo de licenciamento ambiental sofreu várias alterações regulatórias para ajustar-se a realidades mais complexas. E porque a energia é, ao mesmo tempo, serviço público essencial e indústria, sempre propulsora de outros setores que, por sua vez, geram desenvolvimento e renda, mais potencialmente causadora de impacto ambiental(2), o debate sobre a expansão ganha maior importância.

O desafio é constante e premente, em razão dos compromissos assumidos pelo Brasil em tratados internacionais para nos transformarmos efetivamente em uma economia de baixo carbono. O desafio de conciliar a expansão de oferta de geração limpa e firme com o atendimento a uma sempre crescente demanda, por meio de contratos capazes de lastrearem a totalidade do mercado, é o fundamento do atual modelo do SEB. E na busca da solução para a crise hídrica, surge o debate em torno da manutenção da geração de hidroeletricidade como base do planejamento ou a sua substituição por outra fonte capaz de dar escala à indústria da energia, lançando mais carga de uma só vez no sistema. Outros pontos relevantes, em um modelo que parece dar sinais de esgotamento, são os grandes reservatórios, já que a opção pelas usinas a fio d’água tem limitado a capacidade de expansão do atual sistema(3), e a otimização do licenciamento ambiental.

Ou o caminho seria a maior diversificação da matriz elétrica, com a inserção de novas fontes renováveis? Centralizar ou descentralizar? É inegável que possuímos um mar com abundantes ventos e recursos naturais. A União já autoriza a implantação de estruturas e ilhas no mar territorial e, pela Lei 8.617/1993(4), pode autorizar na ZEE e, na plataforma continental, após as 200 milhas, por questão de soberania. Por meio de grandes projetos eólicos marítimos, teremos a possibilidade de geração de muita carga de uma só vez e de uma enorme cadeia produtiva.

Condizente com o papel de think tank brasileiro da VIEX, nos setores ambiental e de energia, cabe lançarmos o debate sobre as eólicas offshore como fonte base da nossa matriz elétrica. E sobre a adoção de incentivos fiscais para estimular maiores investimentos.

Uma das ondas atuais de crescimento do SEB se refere à introdução de novas tipologias, como as eólicas marítimas. Os seus significativos impactos ambientais já foram objeto de estudo pelo Ibama, que lançou, em novembro de 2020, o Termo de Referência para a fonte, consistente nas diretrizes e critérios técnicos gerais que deverão fundamentar a elaboração do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o respectivo Relatório de Impacto Ambiental (Rima), a fim de subsidiar o processo de licenciamento ambiental federal prévio. A Empresa de Pesquisa Energética (EPE) também publicou o seu roadmap.

Mas quais são os desafios regulatórios para a ainda não totalmente revelada fonte de geração de energia eólica offshore? Caberiam novos marcos, a começar pela definição do regime de exploração das áreas marítimas, ou o aprimoramento dos normativos existentes, emitidos pelo Executivo? Aqui cabe focar no papel da atividade de Relações Institucionais e Governamentais – RIG enquanto ferramenta para introduzir novas tipologias e tecnologias no SEB, por meio de marcos jurídico-regulatórios consistentes, como, também, alertando para inconstitucionalidades, injuridicidades e técnica legislativa equivocada, em normativos já por ventura propostos, como os do Executivo que já regram o setor das eólicas offshore. RIG é atividade legal, legítima e deve ser transparente na defesa de interesses, sendo altamente recomendável para o SEB, a partir do debate público nas propostas legislativas(5).

Em 29/07, tivemos o excelente debate promovido pela Viex, que trouxe luz ao tema e, no dia 30/08, acontecerá outro debate, promovido pela OAB Nacional, que pretende reacender o debate sobre as questões regulatórias e os desafios para a fonte.

Não precisamos apenas ser a lanterna a focar no que virá depois, no legado às próximas gerações, mas, urge nos anteciparmos às novas possibilidades e oportunidades de mercado, as quais, ao que tudo indica, estão mesmo no mar.

 


  1. CAMPOS, Roberto. A Lanterna na Popa, Memórias 1. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994, p. 22. CDD 923.281. CDU 92 (Campos, R.).
  2. “O setor elétrico, nas formas de geração, transmissão e distribuição, é um dos setores da infraestrutura que provoca maior impacto socioambiental. Toda forma de produção e uso de energia vai impactar o ambiente natural e a sociedade envolvida. Assim, são indispensáveis os estudos ambientais e o debate prévio à implantação dos empreendimentos, na forma como determinado pelo ordenamento jurídico”. GIACOBBO, Daniela Garcia. SAMPAIO, Rômulo S. R. O licenciamento ambiental nos empreendimentos do setor elétrico. In: PASSOS DE FREITAS, Vladimir; MILKIEWICZ, Larissa (Orgs.). Fontes de Energia & Meio Ambiente. Curitiba: Ed. Juruá, 2017. ISBN: 978-85-362-6675-6.
  3. Sobre o tema, sugiro a leitura do artigo “O que são as usinas a fio d’água e quais os custos inerentes à sua construção?”. FARIA, Ivan D. Instituto Braudel. 05 de março de 2012. Disponível em: http://www.brasil-economia-governo.org.br/2012/03/05/o-que-sao-usinas-hidreletricas-a-fiod%E2%80%99agua-e-quais-os-custos-inerentes-a-sua-construcao/. Acesso em: 02 ago.2021.
  4. BRASIL. Lei 8.617, de 4 de janeiro de 1993. Dispõe sobre o mar territorial, a zona contígua, a zona econômica exclusiva e a plataforma continental brasileiros, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1993. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8617.htm Acesso em: 11 ago. 2021.
  5. Ao comentar a edição do Decreto-Lei n. 1098, de 25 de março de 1970, “que estendeu o mar territorial do Brasil para duzentas milhas, a partir da linha da beira-mar do litoral continental e insular brasileiro”, o jurista Saulo Ramos, em seu também autobiográfico livro Código da Vida, ironizou o contexto premente em que publicado o normativo, referindo que “nada de esperar pela ONU e a convenção sobre zona econômica exclusiva. Foi-se direto para as duzentas milhas de mar territorial. Estava incluída a ilha de Fernando de Noronha. Alargamos nossas fronteiras pelo mar afora. Ninguém declarou guerra ao Brasil”. RAMOS, Saulo. Código da Vida. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007, p. 31. ISBN: 978-85-7665-279- 3.

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Daniela Giacobbo

Daniela Garcia Giacobbo é advogada e consultora jurídica na DGG Advocacia e Consultoria Jurídica. É mestra em Direito da Regulação (FGV Direito Rio) e membro da Comissão Especial de Assuntos Regulatórios da OAB Nacional. Professora, palestrante e autora de diversos artigos e capítulos de livros sobre Direito Ambiental e Direito de Energia, setores dos quais participa de entidades associativas.

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