Desde os primórdios, até hoje em dia

Os patrimônios culturais nacionais nascem, no Ocidente, com o surgimento do Estado-Nação, no final do século XVIII e início do século XIX. Em uma fórmula breve, o Estado-Nação consiste na coincidência entre uma coletividade social e culturalmente característica (Nação) a somente uma entidade político-administrativa soberana em um território determinado (Estado). Ainda mais brevemente, a cada Nação, um Estado[1].

Coube, então, a cada Estado-Nação “criar” as suas próprias instituições, muitas vezes aproveitando os nomes das mais antigas, mas dando-lhes nova roupagem. Urgia, ainda, “inventar” cada uma das “nações” surgidas[2]. Pois bem, assim como apareceram “senados” que, além do nome, pouco tinham a ver com o romano, nacionalidades foram delineadas, pouco a pouco. Os patrimônios culturais nacionais, entre outras novidades, fizeram parte desta última tarefa.

No Brasil, foram artistas e escritores que primeiro se encarregaram da escolha de uma representação simbólica da nacionalidade brasileira nas figuras de índios que, de um modo ou de outro, sofrem nas mãos dos colonizadores, vistos como estrangeiros. Isso é particularmente evidente no romance indianista Iracema, de José de Alencar, no qual a protagonista é sempre ligada à terra, enquanto Martim, pai do seu filho, se mostra frequentemente saudoso de Portugal. Outras escolhas de representações simbólicas da nacionalidade se seguiram[3].

Iracema – Óleo sobre tela de José Maria de Medeiros, 1884.

Museu Nacional de Belas Artes. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Maria_de_Medeiros#/media/Ficheiro:Iracema_hi.jpg

A construção de um patrimônio cultural brasileiro, entendido como um conjunto de bens culturais referentes à nacionalidade, porém, só veio a lume na década de 1930; e não foi obra de artistas e escritores, foi obra do Estado, que, com a instituição do “tombamento” de bens culturais materiais, inaugurou uma diferenciação entre os bens culturais em geral, antes inexistente, distinguindo os que se podem usar e fazer circular sem peias e os que, tendo sido tombados e, com isso, admitidos ao Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – nome então dado ao patrimônio cultural do Brasil -, só o podem com restrições. Essa distinção afastou, durante muito tempo, os bens culturais integrantes do patrimônio cultural brasileiro do mundo comercial e empresarial em geral.

No início da década de 1960, com a sobrevinda da legislação de proteção aos sítios arqueológicos e às peças que contêm, esses bens culturais, que, à sua maneira, também portam referência à nacionalidade, passaram a ser especialmente protegidos, independentemente de tombamento.

Essa extensão do âmbito do patrimônio cultural do Brasil para além do universo restrito dos bens culturais tombados prosseguiu com o advento da Constituição Federal de 1988, que estabeleceu que o Patrimônio Cultural Brasileiro é integrado não somente por bens tombados, mas por todos os “bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”.

Pouco antes disso, em 1986, uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente se encarregara de aproximar o mundo das empresas ao dos bens culturais através do meio ambiente, nos procedimentos de licenciamento ambiental, em que se exigia a avaliação do impacto de empreendimentos sobre bens do Patrimônio Cultural Brasileiro e a execução de programas destinados a mitigar ou compensar os impactos negativos. A superveniência da Constituição Federal de 1988 veio, então, no que toca a essa questão do licenciamento ambiental, especificar melhor do que é que se estava falando ao se tratar dos bens do Patrimônio Cultural Brasileiro.

Desse modo, e especialmente na execução de programas de mitigação e compensação durante os licenciamentos ambientais, alguns executores desses programas notaram que, em muitos casos, os bens culturais que eram objeto dos programas tinham relações diretas com a organização social de comunidades e com o ambiente natural – isto é, com a natureza – com que interagiam. Daí a que se chegasse a que ações similares às daqueles programas poderiam ser executadas com vistas à sustentabilidade, tout court, sem necessariamente estarem vinculadas a algum procedimento de licenciamento ambiental foi, nesta época de ESG[4], somente um passo e isso permitiu que se pudesse reunir, afinal, os ingredientes para o guisado empresa/cultura/natureza do título deste pequeno escrito. Apresenta-se, adiante, então, uma das muitas realizações possíveis do prato:

Em um município do litoral paulista, um empreendimento inclui na sua área de atuação um capão de mata atlântica, localizado em uma área de proteção permanente, que tem de ser preservado.

Por outro lado, as comunidades caiçaras locais utilizam madeiras nativas da mata atlântica, como a caxeta (tabebuia cassinoides) e o cedro (cedrela fissilis), para a confecção de canoas e instrumentos musicais.

Cada um fazendo a sua parte em um entendimento de regras e práticas de observância mútua, o empreendimento e as comunidades caiçaras locais não só preservam, por si, o capão de mata quanto impedem que outras pessoas o degradem: os caiçaras, retirando somente a madeira das árvores do capão de mata caídas naturalmente e, adicionalmente, nos períodos de vigilância das árvores que estão prestes a cair, “flagrando” eventuais degradadores do capão e dando conta disso aos responsáveis pelo empreendimento; quanto a estes últimos, isto é, os responsáveis pelo empreendimento, cuidando da manutenção do capão e encaminhando as denúncias de degradação das plantas e animais que abriga às autoridades competentes. Eis aí, prontinho, um bom guisado de empresa, cultura e natureza, não é mesmo?

Ostinho apresentando rabecas de caxeta feitas à mão, usadas no Fandango Caiçara, 2019. Foto: Marcelo Matos – Fonte: Acervo Scientia

[1] Para uma apresentação histórica do Estado-Nação, ver Hobsbawm, Eric J. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.

[2] Sobre isso, ver Anderson, B. Comunidades imaginadas. São Paulo: Cia. das Letras, 2008.

[3] Sobre esse assunto, ver Fry, Peter. “Feijoada e “Soul Food”: notas sobre a manipulação de símbolos

étnicos e nacionais”. In: Para Inglês Ver – identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

[4] Ver https://www1.folha.uol.com.br/seminariosfolha/esg/

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Atrás do arranha-céu tem o céu

Até 2050, segundo o UN-Habitat, 61% da população mundial viverão em cidades. Assim, imaginando-se que estas são as menores unidades deliberativas no âmbito público e onde tudo acontece na prática, esta forma de assentamento humano transforma-se no principal vetor para se atingir as metas dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS).

Ainda de acordo com o UN-Habitat, cerca de 65% dos ODS só podem ser atingidos por meio das cidades. No entanto, em acordo com pesquisa do Instituto Groundbreaking, desde 2017 até 2021, somente 67 (sessenta e sete) cidades no mundo entregaram seus Relatórios Voluntários Locais (VLR, em inglês), ou seja, divulgaram seus resultados à luz dos ODS. 

Portanto, como será possível chegar aos ODS com um engajamento tão pequeno das cidades nessa agenda? Como mirar e atingir as questões que fazem com que uma cidade tome a decisão de adotar a Agenda 2030 como base de planejamento? 

No Brasil, segundo a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), um grande número de cidades ainda não está alinhado, em termos de seus planejamentos estratégicos, com os ODS e luta com uma visão de curto prazo relacionada à política e às gestões de quatro anos de vigência, ou no máximo oito anos, caso haja reeleições. Nesse cenário, os planos de médio e longo prazo que envolvem os ODS parecem pouco aderentes, em especial se o conhecimento dos gestores sobre o assunto for muito superficial. 

Em geral, o desconhecimento das metas relacionadas aos ODS e o recente desenvolvimento de metodologias para realizar as aferições para as cidades também dificultam uma analogia e a aplicação das formas de medir os Objetivos nessas unidades territoriais. A falta de padronização e de instrumentos de medida dos resultados nas prefeituras, principalmente nas menores, também vem se mostrando uma questão nevrálgica para a adesão aos Objetivos. 

Atualmente, existem vários esforços para criar maneiras simplificadas e também bons indicadores para a comparação dos Municípios no que tange às metas dos ODS, porém, ainda há diversos obstáculos nas prefeituras para que essas administrações consigam utilizar tanto metas, quanto indicadores análogos àqueles dos ODS. 

Uma das principais questões tem a ver com a compartimentalização das secretarias, que têm objetivos específicos e que, muitas vezes, apesar de estarem totalmente ligados aos de outras secretarias, acabam por não integrar nem as ações, nem os indicadores. Nesse contexto, vale lembrar que as metas definidas pela Organização das Nações Unidas (ONU) para os ODS demostram claramente a necessidade dessa integração, demonstrando que todos os ODS são indivisíveis e interligados. 

Essa ausência de pensamento sistêmico por parte dos gestores faz com que seja difícil cumprir e melhorar resultados. Assim, tem-se, em geral, uma intensa sobreposição de ações nas prefeituras buscando atingir metas definidas à luz dos ODS, levando a um desperdício de recursos tanto financeiros, quanto humanos. Nessa linha, muitas vezes é possível verificar que duas secretarias realizam ações com o mesmo público, com objetivos semelhantes e que não são sequer conhecidas uma pela outra. 

Outra dificuldade é a falta de instrumentos de avaliação padronizados que sejam utilizados por vários municípios e que possam, de alguma maneira, criar um meio de comparação das práticas e de compartilhamento dos projetos que funcionam em todos esses diferentes ODS. 

Nesse sentido, no estado de São Paulo, um dos principais indutores do engajamento dos municípios nas agendas foi o Tribunal de Contas do Estado (TCE), que alinhou seus instrumentos de avaliação de desempenho dos municípios aos Objetivos, fazendo com que, de alguma forma, todos os municípios paulistas tivessem que se aproximar e avaliar sua gestão a partir das metas dos ODS. 

Mesmo assim, poucos municípios têm apresentado suas avaliações de resultados do seu desempenho ao encontro dos ODS. Muito porque essas são mais vistas como instrumentos de controle do TCE do que como instrumentos de gestão. 

Atualmente, vantagens interessantes aparecem junto aos bancos de financiamento público para os municípios que têm esses instrumentos de avaliação, quando em busca de recursos para projetos e implementação de políticas de infraestrutura, provendo recursos com condições de juros e pagamentos mais atraentes para os municípios que trabalham alinhados aos ODS. 

Em suma, imaginar que um município está alinhado com uma agenda global é algo que pode ser muito efetivo para a criação de uma narrativa de Desenvolvimento Sustentável, com engajamento dos munícipes e com a real estruturação de projetos que confiram mais resiliência para essas cidades. 

Faz-se, portanto, necessário que movimentos como o desenvolvido pela prefeitura de Nova Iorque, em busca do engajamento e assinatura de pactos para os ODS, se multipliquem, e da mesma forma, que os Tribunais de Contas de mais estados adotem as práticas do TCE de São Paulo, induzindo – e quase que obrigando – os municípios a se alinharem a esta agenda global. Caso ações como esta não sejam realizadas com mais assertividade, certamente estaremos cada vez mais longe de atingir as metas previstas pelos ODS para a Agenda 2030 e de se chegar a um resultado positivo na reversão do aquecimento global, da desigualdade extrema e da ampla degradação do meio ambiente. 

Autores:

Delfim Rocha: Engenheiro Civil, MSc. em Sustentabilidade junto à FGV EAESP e em Mecânica dos Solos pela Coppe/UFRJ. Atuou em empresas de consultoria de porte internacional, ocupou a Gerência Ambiental de Energia da Alcan Aluminíos do Brasil e Novelis do Brasil, e a Coordenação Corporativa de Licenciamento Ambiental de Mineração e Indústria da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). Além de ocupar, desde 2009, a Diretoria Executiva da Ferreira Rocha Assessoria e Serviços Socioambientais, presta assessoria técnico-estratégica para gestão socioambiental e avaliação de novas oportunidades de negócios, em especial nos setores de energia, mineração e empreendimentos imobiliários. 

Monica Picavea: Jornalista, MSc. em Sustentabilidade junto à FGV EAES e em Negócios pela Baldwin Wallace de Ohio, e formada em Design para a Sustentabilidade pelo Gaia Education. Como Diretora da Oficina da Sustentabilidade, presta assessoria técnica a empreendedores nacionais e multinacionais para o planejamento e execução de mapeamento e engajamento de stakeholders em projetos de diferentes setores produtivos, bem como a prefeituras no planejamento estratégico de municípios com base nos ODS.

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It’s gonna be a bright (bright), bright (bright) sunshiny day

Por Renata Campetti Amaral, Alexandre Salomão Jabra e Manuela Demarche,

Os recentes acontecimentos relacionados à pandemia da COVID-19, ao longo dos últimos meses, ampliaram as discussões sobre questões ambientais. A preocupação com o futuro do planeta em termos de preservação, riscos e controle ambientais nunca esteve tão em discussão como atualmente. Tais aspectos estão cada vez mais na mira do poder público, do setor privado, da sociedade civil e da mídia. Nesse contexto, o termo da vez no mercado é “ESG”, sigla em inglês para ambiental, social e governança (Environmental, Social and Governance). Esses três aspectos são referências na medição dos índices de sustentabilidade e impacto social de um investimento ou de uma empresa.

No que se refere ao aspecto ambiental, visando facilitar ao investidor a correta identificação de atividades consideradas sustentáveis, a União Europeia desenvolveu um Regulamento de Taxonomia, estabelecendo seis objetivos ambientais. São eles a mitigação das mudanças climáticas, a adaptação a elas, o uso sustentável e a proteção da água e dos recursos marítimos, a transição para uma economia circular, controle e prevenção da poluição e proteção e restauração da biodiversidade. Para considerar uma atividade econômica ecologicamente sustentável, é necessário que ela contribua substancialmente com pelo menos um dos objetivos estabelecidos – e não causar danos significativos a nenhum deles –, além de estar em conformidade com especificidades técnicas de triagem e com as mínimas salvaguardas sociais e de governança.

Tradicionalmente, os aspectos ambientais de ESG estavam restritos às questões climáticas, ou seja, no controle dos gases de efeito estufa (GEE ou GHG), cumprimento das metas de redução de emissões no âmbito do Acordo de Paris, utilização de energia limpa por meio de alterações na matriz energética, dentre outras. Mais recentemente, houve um incremento da preocupação quanto às consequências negativas das mudanças climáticas, como é o caso do aumento gradativo da temperatura global, aumento do nível dos oceanos, destruição do habitat de animais, catástrofes naturais e o aumento no número de incêndios de altas proporções.

Os termos “emergência climática”, “litigância climática”, “riscos climáticos” “energia limpa” e “neutralidade de carbono” passaram a ser estudados e explorados por especialistas da área ambiental com maior intensidade. Isso deve-se ao fato de que grande parte dos riscos globais, além de se relacionarem com questões climáticas, têm resultado em riscos financeiros concretos e nas divulgações obrigatórias de informações por parte de governantes, investidores e empresas. O mindset mudou: a preocupação não se restringe mais àquilo que as empresas podem causar em termos de impactos às mudanças climáticas, mas sim os impactos que as mudanças climáticas podem causar às empresas e negócios.

Um exemplo recente dessa crescente preocupação é a inclusão, pela primeira vez na história, dos efeitos e riscos decorrentes das mudanças climáticas no Relatório de Estabilidade Financeira semestral, do Sistema de Reserva Federal (Federal Reserve System), dos Estados Unidos. O relatório, publicado no início de novembro de 2020, aponta que a incerteza do momento e da intensidade dos eventos e desastres climáticos, assim como a difícil compreensão da relação deles com os resultados econômicos, podem levar a uma reprecificação inesperada de ativos. Dessa forma, é esperado que os bancos elaborem sistemas apropriados para identificar, medir, controlar e monitorar todos os riscos materiais, incluindo os climáticos.

Outro exemplo interessante ocorreu no Reino Unido. Tendo em vista a obrigação imposta às empresas de relatarem os impactos financeiros das mudanças climáticas em seus negócios nos próximos cinco anos, o país é o primeiro a tornar as divulgações obrigatórias, levando em consideração que investidores e governos exigem cada vez mais que as empresas reduzam suas emissões de gases de efeito estufa.

O direito das mudanças climáticas e as discussões mais recentes sobre neutralidade de carbono, mercado de carbono, projetos REDD+ e energia limpa, contudo, não representam as únicas facetas dos aspectos ambientais de ESG atualmente discutidos e incorporados pelo setor privado. Outros aspectos ambientais igualmente relevantes para o conceito ESG envolvem, por exemplo, implementação de medidas de gerenciamento de resíduos e de efluentes, cumprimento com as exigências de logística reversa, observância das regras para acesso ao patrimônio genético e conhecimento tradicional associado, implementação de medidas de sustentabilidade e economia circular nos processos produtivos, auditoria ambiental interna e na cadeia de supply chain, observância das restrições aplicáveis para áreas ocupadas por minorias como quilombolas e indígenas, além do cumprimento das diversas normas ambientais.

Nesse contexto, nota-se que, atualmente, os aspectos de ESG não podem ser vislumbrados tão somente sob o enfoque climático, como feito tradicionalmente, mas também de uma forma ainda mais ampla, abrangendo todas as facetas das questões ambientais, cada vez mais relevantes para o desenvolvimento das atividades humanas e essencial para a busca do desenvolvimento sustentável.

Renata Campetti Amaral, Alexandre Salomão Jabra e Manuela Demarche, sócia e associados da área de meio ambiente e sustentabilidade de Trench Rossi Watanabe
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