Desde os primórdios, até hoje em dia

Empresa, cultura e natureza até que dão uma rima, mas será que podem dar um bom guisado?

Carlos Eduardo Caldarelli

Os patrimônios culturais nacionais nascem, no Ocidente, com o surgimento do Estado-Nação, no final do século XVIII e início do século XIX. Em uma fórmula breve, o Estado-Nação consiste na coincidência entre uma coletividade social e culturalmente característica (Nação) a somente uma entidade político-administrativa soberana em um território determinado (Estado). Ainda mais brevemente, a cada Nação, um Estado[1].

Coube, então, a cada Estado-Nação “criar” as suas próprias instituições, muitas vezes aproveitando os nomes das mais antigas, mas dando-lhes nova roupagem. Urgia, ainda, “inventar” cada uma das “nações” surgidas[2]. Pois bem, assim como apareceram “senados” que, além do nome, pouco tinham a ver com o romano, nacionalidades foram delineadas, pouco a pouco. Os patrimônios culturais nacionais, entre outras novidades, fizeram parte desta última tarefa.

No Brasil, foram artistas e escritores que primeiro se encarregaram da escolha de uma representação simbólica da nacionalidade brasileira nas figuras de índios que, de um modo ou de outro, sofrem nas mãos dos colonizadores, vistos como estrangeiros. Isso é particularmente evidente no romance indianista Iracema, de José de Alencar, no qual a protagonista é sempre ligada à terra, enquanto Martim, pai do seu filho, se mostra frequentemente saudoso de Portugal. Outras escolhas de representações simbólicas da nacionalidade se seguiram[3].

Iracema – Óleo sobre tela de José Maria de Medeiros, 1884.

Museu Nacional de Belas Artes. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Maria_de_Medeiros#/media/Ficheiro:Iracema_hi.jpg

A construção de um patrimônio cultural brasileiro, entendido como um conjunto de bens culturais referentes à nacionalidade, porém, só veio a lume na década de 1930; e não foi obra de artistas e escritores, foi obra do Estado, que, com a instituição do “tombamento” de bens culturais materiais, inaugurou uma diferenciação entre os bens culturais em geral, antes inexistente, distinguindo os que se podem usar e fazer circular sem peias e os que, tendo sido tombados e, com isso, admitidos ao Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – nome então dado ao patrimônio cultural do Brasil -, só o podem com restrições. Essa distinção afastou, durante muito tempo, os bens culturais integrantes do patrimônio cultural brasileiro do mundo comercial e empresarial em geral.

No início da década de 1960, com a sobrevinda da legislação de proteção aos sítios arqueológicos e às peças que contêm, esses bens culturais, que, à sua maneira, também portam referência à nacionalidade, passaram a ser especialmente protegidos, independentemente de tombamento.

Essa extensão do âmbito do patrimônio cultural do Brasil para além do universo restrito dos bens culturais tombados prosseguiu com o advento da Constituição Federal de 1988, que estabeleceu que o Patrimônio Cultural Brasileiro é integrado não somente por bens tombados, mas por todos os “bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”.

Pouco antes disso, em 1986, uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente se encarregara de aproximar o mundo das empresas ao dos bens culturais através do meio ambiente, nos procedimentos de licenciamento ambiental, em que se exigia a avaliação do impacto de empreendimentos sobre bens do Patrimônio Cultural Brasileiro e a execução de programas destinados a mitigar ou compensar os impactos negativos. A superveniência da Constituição Federal de 1988 veio, então, no que toca a essa questão do licenciamento ambiental, especificar melhor do que é que se estava falando ao se tratar dos bens do Patrimônio Cultural Brasileiro.

Desse modo, e especialmente na execução de programas de mitigação e compensação durante os licenciamentos ambientais, alguns executores desses programas notaram que, em muitos casos, os bens culturais que eram objeto dos programas tinham relações diretas com a organização social de comunidades e com o ambiente natural – isto é, com a natureza – com que interagiam. Daí a que se chegasse a que ações similares às daqueles programas poderiam ser executadas com vistas à sustentabilidade, tout court, sem necessariamente estarem vinculadas a algum procedimento de licenciamento ambiental foi, nesta época de ESG[4], somente um passo e isso permitiu que se pudesse reunir, afinal, os ingredientes para o guisado empresa/cultura/natureza do título deste pequeno escrito. Apresenta-se, adiante, então, uma das muitas realizações possíveis do prato:

Em um município do litoral paulista, um empreendimento inclui na sua área de atuação um capão de mata atlântica, localizado em uma área de proteção permanente, que tem de ser preservado.

Por outro lado, as comunidades caiçaras locais utilizam madeiras nativas da mata atlântica, como a caxeta (tabebuia cassinoides) e o cedro (cedrela fissilis), para a confecção de canoas e instrumentos musicais.

Cada um fazendo a sua parte em um entendimento de regras e práticas de observância mútua, o empreendimento e as comunidades caiçaras locais não só preservam, por si, o capão de mata quanto impedem que outras pessoas o degradem: os caiçaras, retirando somente a madeira das árvores do capão de mata caídas naturalmente e, adicionalmente, nos períodos de vigilância das árvores que estão prestes a cair, “flagrando” eventuais degradadores do capão e dando conta disso aos responsáveis pelo empreendimento; quanto a estes últimos, isto é, os responsáveis pelo empreendimento, cuidando da manutenção do capão e encaminhando as denúncias de degradação das plantas e animais que abriga às autoridades competentes. Eis aí, prontinho, um bom guisado de empresa, cultura e natureza, não é mesmo?

Ostinho apresentando rabecas de caxeta feitas à mão, usadas no Fandango Caiçara, 2019. Foto: Marcelo Matos – Fonte: Acervo Scientia

[1] Para uma apresentação histórica do Estado-Nação, ver Hobsbawm, Eric J. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.

[2] Sobre isso, ver Anderson, B. Comunidades imaginadas. São Paulo: Cia. das Letras, 2008.

[3] Sobre esse assunto, ver Fry, Peter. “Feijoada e “Soul Food”: notas sobre a manipulação de símbolos

étnicos e nacionais”. In: Para Inglês Ver – identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

[4] Ver https://www1.folha.uol.com.br/seminariosfolha/esg/

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Carlos Eduardo Caldarelli

Especialista em Direito Ambiental pelas faculdades de Direito e Saúde Pública da Universidade de São Paulo – FADUSP/FSP USP, 2000; Especialista (MBA) em Gestão e Tecnologia Ambientais pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo – POLI USP, 2007; Mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas – CPDOC FGV, 2011. Desde 1999 – Coordenador geral da área de estudos socioeconômicos e socioculturais da Scientia Consultoria Científica Ltda.

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