From Now On

Precisamos do H2V como fonte estratégica à transição energética, o quanto antes

Daniela Giacobbo

Em Nota técnica produzida em 23/02/21 e atualizada em 14/06/21 (EPE-DEA NT003/2021 rev01), no estudo “Bases para a Consolidação da Estratégia Brasileira do Hidrogênio”1 , a Empresa de Pesquisa Energética – EPE, empresa pública vinculada ao Ministério de Minas e Energia – MME, que tem por competência a prestação de serviços de estudos e pesquisas destinadas a subsidiar o planejamento do setor, classificou o hidrogênio como uma fonte de energia estratégica, ou como “um objetivo estratégico de governos e empresas em todo o mundo”, com o potencial de acelerar a transição energética nos mercados globais2 . Internamente, a EPE estuda como alçar o insumo à fonte de energia, a ser utilizado, principalmente, nos transportes (mas também, na forma de amônia verde, como matéria prima para insumos industriais e fertilizantes), com a sua obtenção, no caso do hidrogênio verde (H2V), a partir de matérias-primas renováveis, por meio de eletrólise da água ou pela separação termoquímica ou queima da biomassa, de biocombustíveis líquidos e gasosos, como o etanol e o biogás.
Segundo destacado no “Programa Nacional do Hidrogênio”3 , o hidrogênio permite o armazenamento eficiente de energia por longos períodos e pode ser utilizado para mobilidade e geração distribuída de energia.
Já a agência IRENA, que apoia os países na transição energética e tem sido um centro intergovernamental de promoção das energias renováveis, por meio de repositório de políticas, tecnologias e de recursos financeiros, tem se dedicado a estudar o papel geopolítico do hidrogênio na nova dinâmica global de desenvolvimento da energia. No estudo “Geopolítica da Transformação Energética: O Fator Hidrogênio” lançado recentemente, em janeiro de 2022, a agência defendeu que o hidrogênio “é cada vez mais visto como a peça que faltava no quebra-cabeça da transformação de energia para descarbonizar setores mais difíceis de reduzir”4 . Isso porque a fonte desempenharia, segundo o relatório da agência, um novo papel no redesenho do mapa geopolítico de transformação energética ao propiciar que países com abundância de energia renovável de baixo custo se tornem produtores de hidrogênio verde, com consequências geoeconômicas e geopolíticas proporcionais. E isso afetaria as relações bilaterais na medida em que o comércio de hidrogênio e os fluxos de investimento gerariam novos padrões de interdependência. Assim, ainda que considerados desafios tecnológicos, a agência não fala em um – distante – futuro papel do hidrogênio em um contexto mundial energético sustentável, mas já se refere a um mercado global de hidrogênio existente, estudando a fonte na atual dinâmica global de energia, com destaque para os fatores comercial e geopolítico. Entre as muitas conclusões, a agência refere que “O hidrogênio faz parte de um cenário de transição energética muito maior, e suas estratégias de desenvolvimento e implantação não devem ser consideradas isoladamente”. Refere, ainda, que “o hidrogênio pode ser um caminho atraente para os exportadores de combustíveis fósseis ajudarem a diversificar suas economias e desenvolver novas indústrias de exportação”5 . No recentíssimo cenário geopolítico e geoeconômico, a guerra provocada pela Rússia na Ucrânia tem modificado as relações políticas e comerciais internacionais, em razão das sanções econômicas impostas à Rússia principalmente pelos países membros da OTAN, mas que afetará a dependência do petróleo e gás russos no mundo todo. Muitos países da EU importadores do gás natural vindo da Rússia seriam enormemente prejudicados pelo corte do fornecimento, com implicações na matriz energética europeia. E no European Green Deal. Parece claro que o conflito desencadeou um novo movimento de descarbonização das economias, onde o H2V teria papel fundamental. No caso do Brasil, que possui uma matriz energética diversificada, podemos nos tornar um grande produtor de hidrogênio verde, tal como também já desenhado pelo MME/EPE e, via de consequência, um grande exportador, assumindo um novo papel no mapa geopolítico mundial.
O Brasil tem tudo para ser o “berço mundial” da transição energética, por meio da produção de H2V. O país já é membro da Parceria Internacional para Hidrogênio e Células a Combustível na Economia – IPHE (International Partnership for Hydrogen and Fuel Cells in the Economy) 6 , desde 2003.
Em 2020, o Plano Nacional de Energia 2050 (PNE 2050) identificou o H2 como uma

“tecnologia disruptiva e como elemento de interesse no contexto da descarbonização da matriz energética, elencando diversos usos e aplicações, além de trazer recomendações para a política energética, entre as quais se podem elencar o adequado desenho do arcabouço jurídico-regulatório que incentive a penetração de tecnologias aplicáveis à cadeia energética do hidrogênio como um todo (produção, transporte, armazenamento e consumo), assim como a necessidade trabalhar de forma articulada e coordenada com instituições internacionais”.7

De fato, talvez precisemos de definições regulatórias, para não perdermos essa possibilidade de liderança. Em atendimento à Resolução 06/21, do Conselho Nacional de Política Energética – CNPE, o Ministério de Minas e Energia, por meio de suas Secretarias Executiva, de Planejamento e Desenvolvimento Energético e de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis realizou, em julho de 2021, o “Programa Nacional do Hidrogênio” 8 , com a cooperação dos Ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) e Desenvolvimento Regional (MDR) e o apoio técnico da EPE, que, após, editou a referida Nota Técnica 003/2021. Foram realizadas reuniões envolvendo instituições e agentes dos setores público e privado e instituído um Comitê Técnico PNH2, representativo das partes interessadas, para gerenciar o programa. Apesar de estruturado em seis importantes eixos ((i) fortalecimento das bases científicotecnológicas; (ii) capacitação de recursos humanos; (iii) planejamento energético; (iv) arcabouço legal-regulatório; (v) crescimento do mercado e competitividade e; (vi) cooperação internacional), o estudo não introduziu planos estratégicos ou diretrizes concretas, aproximando-se mais de um programa de recomendações para o incentivo do hidrogênio. O país precisa ter regras jurídicas claras por meio de um arcabouço jurídico-regulatório que possibilite a implantação da fonte e de uma “compreensão mais profunda de seus efeitos mais amplos, incluindo aspectos geopolíticos”, como já referido pela IRENA9 .
A experiência internacional seria bem-vinda com contribuições de especialistas nas áreas de energia, meio ambiente e geopolítica, semelhante ao que foi feito em 2019, quando da criação do Termo de Referência Padrão para nortear o licenciamento ambiental para a fonte eólica offshore, pelo Ibama, a partir do Projeto “Avaliação de Impacto Ambiental de Complexos Eólicos Offshore”, desenvolvido no âmbito dos Diálogos Setoriais10, quando houve uma troca efetiva entre países da União Europeia e o Brasil.
E por falar em licenciamento ambiental, em 10/02/22, foi editada a Resolução 03, pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente do Ceará – Coema11 que dispõe sobre os critérios e procedimentos do licenciamento ambiental para empreendimentos de produção do Hidrogênio Verde (H2V), no âmbito daquele estado. Ao discorrer sobre o procedimento trifásico (LP, LI e LO), dado o alto potencial poluidor degradador, o normativo entendeu pela necessidade de realização de um Estudo de Análise de Risco, independentemente do porte do empreendimento, estudo ambiental esse que, no entanto, não foi especificado. Assim como não ficaram claros os critérios para a apresentação de Estudo de Impacto Ambiental -EIA/Rima para o licenciamento prévio, já que o normativo também prevê o Relatório Ambiental Simplificado (RAS), estando tais estudos, por outro lado, vinculados ao porte do empreendimento. No esforço de se destacar como polo produtor, o Estado do Ceará saiu na frente, mas classificou todas as atividades e empreendimentos como de impacto regional. A Lei Complementar 140/11 não reconhece o controle ambiental regional por parte dos estados, tendo substituído, para fins de definição de competência para licenciar, o critério de abrangência ou da extensão dos impactos ambientais diretos pelo da efetiva localização do empreendimento/atividade. Nesse caso, seria a localização exata das plantas de geração e seus sistemas associados.
De todo modo, urge a definição de critérios regulatórios e padrões para o licenciamento ambiental a fim de que sejam atraídos investimentos e para que seja dado início imediato aos projetos de plantas de eletrólise ou de outras formas de geração. E para que não se fale mais apenas no potencial da fonte, mas na sua realidade. A partir de agora. From now on.

1 EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA – EPE. Bases para a Consolidação da Estratégia Brasileira do Hidrogênio. Site. Brasília, junho de 2021. Disponível em: https://www.epe.gov.br/pt/publicacoes-dadosabertos/publicacoes/nota-tecnica-bases-para-a-consolidacao-da-estrategia-brasileira-do-hidrogenio. Acesso em 20 fev 2022. 2 “O hidrogênio já é relevante em termos econômicos atualmente. O mercado mundial de hidrogênio em valor econômico, em 2019, correspondeu à monta de USD 118 bilhões (GRAND VIEW RESEARCH, 2020) a USD 136 bilhões (MARKETS AND MARKETS, 2020). Ademais, espera-se um crescimento significativo desse mercado já nos próximos anos, que poderá alcançar montantes de USD 160 bilhões (GLOBAL MARKET INSIGHTS, 2020) a quase USD 200 bilhões (MARKETS AND MARKETS, 2020). A força motriz deste crescimento é a visão de governos e empresas do hidrogênio como necessário para viabilizar a descarbonização profunda da economia mundial, requerida para a consecução das metas do Acordo de Paris no horizonte 2050”. 3 MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA – MME. Programa Nacional do Hidrogênio. Brasília, julho de 2021. Disponível em: https://www.gov.br/mme/pt-br/assuntos/noticias/mme-apresenta-ao-cnpe-propostade-diretrizes-para-o-programa-nacional-do-hidrogenio-pnh2/HidrognioRelatriodiretrizes.pdf. Acesso em: 20 fev. 2022.

4 Idem 5 Idem

6 Parceria Internacional para Hidrogênio e Células de Combustível na Economia/International Partnership for Hydrogen and Fuel Cells in the Economy – IPHE. Disponível em: https://www.iphe.net/. Acesso em: 10 fev. 2022. 7 MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA – MME. Empresa de Pesquisa Energética – EPE. Plano Nacional de Energia 2050. Brasília, dezembro de 2020. Disponível em: https://www.epe.gov.br/pt/publicacoes-dadosabertos/publicacoes/Plano-Nacional-de-Energia-2050. Acesso em: 20 fev. 2022. 8 Idem

9 Op. Cit. 10 DIÁLOGOS SETORIAIS UNIÃO EUROPEIA – BRASIL. Estudo mapeia modelos decisórios ambientais aplicados em seis países da EU para complexos eólicos offshore. Brasília, novembro de 2019. Disponível em: http://www.sectordialogues.org/noticia/estudo-mapeia-modelos-decisorios-ambientais-aplicadosem-seis-paises-da-ue-para-complexos-eolicos-offshore. Acesso em: 20 fev. 22. 11 Resolução COEMA 03, de 10 de fevereiro de 2022. DOE – CE de 10/02/22. Disponível em: https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=427495. Acesso em: 10 fev. 2022.

Autor:

Daniela Giacobbo:  Advogada e consultora jurídica na DGG Advocacia e Consultoria Jurídica. É mestra em Direito da Regulação (FGV Direito Rio). Foi Assessora da Presidência do Ibama (2019-2020), Assessora de  Desembargador Federal no Tribunal Regional Federal da 4a Região (TRF4) (1994 -2019) e membro da Comissão Especial de Assuntos Regulatórios do Conselho Federal da OAB – CFOAB (2020- 2022). Há mais de 30 anos trabalha ativamente com Direito Ambiental. Participa, ativamente, também das seguintes entidades: Associação Brasileira de Direito de Energia e Meio
Ambiente – ABDEM, Associação Brasileira de Eólicas Marítimas – Abemar, Instituto Brasileiro de Direito e Sustentabilidade – IBRADES, Sindienergia RS – Energias Renováveis e União Brasileira da Advocacia Ambiental – UBAA. Professora convidada da Fundação Getúlio Vargas – FGV Energia e da Universidade Católica de Petrópolis – UCP, respectivamente, nos cursos MBA Executivo em Negócios do Setor Elétrico, MBA Executivo em Engenharia de Descomissionamento e Desmantelamento de Navios e Ativos Offshore e MBA Executivo em Setor Elétrico e Mercado de Energia, com a Disciplina de Licenciamento Ambiental. É palestrante e autora de diversos artigos e capítulos de livros sobre Direito Ambiental, Direito de Energia e Infraestrutura, bem como Direito do Agronegócio.

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Daniela Giacobbo

Daniela Garcia Giacobbo é advogada e consultora jurídica na DGG Advocacia e Consultoria Jurídica. É mestra em Direito da Regulação (FGV Direito Rio) e membro da Comissão Especial de Assuntos Regulatórios da OAB Nacional. Professora, palestrante e autora de diversos artigos e capítulos de livros sobre Direito Ambiental e Direito de Energia, setores dos quais participa de entidades associativas.

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