Detalhes tão pequenos de nós dois

PCHS e CGHs na matriz energética nacional

Joana Cruz

Quem conhece a história da canção Detalhes, de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, sabe que a vida, realmente, é feita de detalhes. Segundo Araújo (2006)[1], numa noite de março de 1971, Roberto Carlos estava em sua casa, no Morumbi, em São Paulo. De repente, teve a inspiração, pegou o violão e fez um primeiro verso para uma melodia. Insistiu um pouco mais e fez um segundo. Tentou fazer o terceiro verso e não conseguiu. Mais tarde, registrou o que tinha feito e foi dormir. No dia seguinte, ele se surpreendeu ao ouvir a fita gravada, pois considerou aqueles versos muito ruins. O cantor passou, então, a refazer tudo e concebeu uma nova composição, recriando os primeiros versos, agora em definitivo.

Mais tarde, ainda segundo Araújo (2006), junto com Erasmo Carlos, após debruçarem sobre a melodia, houve um esbarrão com relação à letra, em especial quanto ao verso […] o ronco barulhento do seu carro”. Intrigado com essa expressão, Roberto Carlos só sossegou quando colheu opiniões diversas, todas elas unânimes e favoráveis à sua permanência. Para nós, ouvintes, esse verso pode passar desapercebido, mas para seus compositores foi tratado com esmero, requinte e recheado de significados. E assim foi surgindo, no ano de 1971, a canção que, hoje, o mundo conhece e reconhece, em todos os seus detalhes.

Por que disso tudo? Os detalhes são preciosos. E nos projetos hidrelétricos, eles não se mostram diferentes. Como sabido, a implantação de uma usina hidrelétrica, seja CGH[2], PCH[3] ou UHE[4], envolve a combinação criteriosa de vários fatores, técnicos e não técnicos, concretos e abstratos, de naturezas distintas. Atendo-se à avaliação técnica, costumo pontuar que quanto menor nosso empreendimento hidrelétrico, maior deve ser a acuidade dos estudos de base, a saber: topografia, hidrologia e geologia. 

Sabendo que a potência de um empreendimento hidrelétrico é dada pela relação direta entre queda bruta e vazão, a topografia divide o estrelado, de igual maneira, com a hidrologia. 

Além de determinar a queda bruta, a topografia é responsável por auxiliar o arranjo geral do projeto; os quantitativos de corte e aterro; os custos das movimentações de terra; os projetos das estradas etc. Evidentemente, também, essa variável está relacionada ao cronograma e ao custo da obra.

Já a hidrologia responde à pergunta intrigante: tem água suficiente? Para esclarecer esse questionamento, são feitos estudos para determinar a vazão média, utilizada no cálculo da potência, como também as vazões mínimas e máximas. As vazões mínimas são fundamentais para definição das vazões a serem mantidas no trecho de vazão reduzida, caso o arranjo esteja assim estruturado. Não menos importante, as vazões máximas são utilizadas para o dimensionamento das estruturas de segurança, como, por exemplo, o vertedor. Assim, qualquer erro nas vazões mínimas, ainda que unitário, poderá comprometer o estudo energético. Da mesma forma, equívocos ou simplificações nos estudos de vazões máximas podem comprometer a segurança do projeto e aumentar o custo da obra. 

No meio da análise entre a topografia e a hidrologia, surge outro personagem de igual protagonismo. Apesar de não estar ligada à estimativa da potência do empreendimento hidrelétrico, a geologia não pode ser descartada na avaliação de um potencial. 

Dependendo da gênese do maciço e de suas características locais relacionadas ao perfil de alteração de onde se pretende instalar o empreendimento hidrelétrico, os riscos geológicos podem inviabilizar o projeto, mesmo havendo uma relação favorável entre queda bruta e vazão. Isso ocorre porque a existência de zonas de cisalhamento, falhas e fraturas pode comprometer totalmente um eixo. Portanto, para evitar imprevistos, as investigações geológicas são vitais.

Neste contexto, as análises demonstram a enorme relevância entre topografia, hidrologia e geologia, devendo esse tripé ser analisado concomitantemente e de modo integrado, já que são, assim como nossa canção, “[…] coisas muito grandes pra esquecer, E a toda hora vão estar presentes, Você vai ver”. 

Na implantação de um empreendimento hidrelétrico, é inevitável que ocorram divergências entre as premissas adotadas na fase de projeto e a realidade executiva. Assim sendo, busca-se que tais discrepâncias estejam dentro dos limites aceitáveis de segurança técnica e econômica. Restringindo-se às CGHs e PCHs, essa avaliação deve ser o mais criteriosa possível, de forma que os impactos decorrentes de tais discrepâncias não sejam significativos a ponto de inviabilizar o projeto. 

A prática atual, no entanto, em função da qualidade e simplificação dos estudos, tem demonstrado que os impactos mencionados estão ultrapassando os “limites aceitáveis”, com interferências substanciais no cronograma e nos custos previstos, chegando ao ponto, em alguns casos, de rediscussão de viabilidade técnica. Em casos ainda mais específicos, um projeto, desenhado como PCH, acaba, na prática, se tornando uma CGH. Portanto, a etapa de compatibilização entre investimentos em estudos básicos e preliminares e risco aceitável é um desafio a ser superado, sendo preponderante a avaliação do porte do projeto.

E o que fica disso tudo? Detalhes devem ser sempre vistos e considerados como fatores decisivos em quaisquer tomadas de decisão, seja na vida cotidiana, nas relações interpessoais ou, ainda, no desenvolvimento de projetos hidrelétricos. Devemos sempre estar atentos aos versos da melodia, ainda que seja um único trecho com menção ao “[…] ronco barulhento do carro, um simples arredondamento de casa decimal, uma simples calibração de equipamento de campo ou uma simples fissura no terreno. Só assim, o som do conjunto turbina-gerador soará como música agradável e confortante aos ouvidos, não nos dando impulso para tentar jamais esquecê-lo.

[1] Roberto Carlos em Detalhes, 2006. Editora Planeta. 

[2]CGH = Central Geradora Hidrelétrica, com potência de até 5 MW.

[3]PCH = Pequena Central Hidrelétrica, com potência entre 5,1 MW e 50 MW.

[4]UHE = Usina Hidrelétrica, com potência superior a 50 MW.

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Joana Cruz

Diretora, Azurit Engenharia e Meio Ambiente. Engenheira Civil, formada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 2000. Mestre em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos, formada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 2003, cujo tema de dissertação foi modelagem de rebaixamento de lençol freático a partir do software Visual ModFlow. Especialização em Pequenas Centrais Hidrelétricas, formada pela Universidade Federal de Itajubá (Unifei) em 2010. Em 2006, fundou a Azurit Engenharia e Meio Ambiente Ltda. Atuou como analista de processos de outorga de usos de recursos hídricos do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM), no período de 2005 a 2006. Atuou como analista ambiental da Fundação Estadual do Meio Ambiente de Minas Gerais (FEAM), no período de 2004 a 2005. Experiência docente em curso técnico e em curso de graduação.

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